segunda-feira, 27 de junho de 2022

Adventistas, profecias e analfabetismo político

 


Sabe qual o problema dos pastores adventistas? Eles não têm ciências sociais na sua formação. Um dia, encontrei um pastor adventista no Seminário de Estudos da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. Na época eu fazia mestrado, apresentei minha pesquisa, e ele me convidou para  almoçarmos juntos e conversamos. Ele confessou se sentir deslocado com o tipo de discussão desse evento.  Não era um evento sobre teologia - a intenção era estudar a religião como um fenômeno social, cultural e histórico. Na conversa, ele admitiu que o seminário adventista de formação de pastores estuda apenas hermenêutica e exegese do texto bíblico. 


Isso significa que estudam o sentido da Bíblia dentro dela mesma, sem fazer comparações com outras fontes. Os teologandos estudam línguas antigas, filosofia, mas não estudam história, política, economia, sociologia ou antropologia. Uma pregação que ouvi certa vez mostra bem isso. Ouvi o pregador dizer que Lutero foi morto pela igreja católica, o que é mentira. Pensei que fosse um pregador leigo, mas depois descobri que era um pastor. 


Outro exemplo. Sempre ouvi os pastores celebrando reformadores como Lutero e Calvino, e até o ensino médio eram os únicos reformadores que eu havia estudado. Mas na minha pesquisa de mestrado eu entendi que existem dois tipos de reforma protestante: a magistral e a radical. Lutero e Calvino representam a reforma magistral, enquanto a Igreja Adventista vem da herança da reforma radical. Pior: Lutero também ajudou a perseguir reformadores radicais. O resultado dessa ignorância? Os pastores adventistas leem sobre profecias, mas não sabem analisar os fatos da atualidade para vê-las se cumprindo. São analfabetos políticos, e ajudam a manter o povo da igreja na mesma situação.


Quando eu era adolescente e ainda estava no ensino médio, eu li o livro “Sinais de Esperança”, de Alejandro Bullón. No último capítulo, ele faz uma previsão que me deixou muito intrigado. O mundo contemporâneo vive sistemas democráticos com liberdade de crença, mas a perseguição que a Igreja Adventista prega, após um decreto dominical, iria sim acontecer. Ele só não disse como. O mais importante, ele não respondeu: quais os caminhos sociais para sairmos da democracia e voltarmos à perseguição? Quais os gatilhos para acionar esse retrocesso? Talvez Bullón nem tivesse a intenção de dar essa explicação. Mas algum líder adventista consegue dá-la? 


Depois de uma graduação, um mestrado e um doutorado em ciências sociais, ficou mais claro para mim esse caminho que Bullón não explicou. Minhas teses não são sobre esse tema, mas ajudam a dar pistas. Meu objetivo é apenas provocar todos os pensadores adventistas a entender minha interpretação para criticá-la, revisá-la, ampliá-la, e poder chegar a conclusões melhores. 


Pense comigo. O mundo contemporâneo está em cima de dois grandes pilares: o estado democrático de direito e o modo de produção capitalista. É isso aí: política e economia estão nos alicerces de tudo, inclusive da religião. Duvida? John Huss foi um reformador alemão que viveu mais de um século antes de Lutero, e que foi morto por causa de suas ideias. Provavelmente, o pastor que eu citei no parágrafo três confundiu os dois reformadores. Por que Lutero conseguiu emplacar suas ideias  e Huss não? Porque Lutero estava na hora certa e no lugar certo. O luteranismo surgiu na mesma época em que o capitalismo estava nascendo; os plebeus comerciantes das cidades (burgueses) estavam ficando mais ricos que os nobres, e se deram conta de que poderiam ter também o poder político. Já que os nobres se diziam escolhidos de Deus, e os reis obedeciam ao Vaticano, mudar de religião era uma forma interessante de mudar a política. Assim vemos que a reforma luterana e calvinista se deu lado a lado com a revolução burguesa. 


O mundo ocidental moderno nasceu dessa revolução. Que na verdade, foram várias revoluções: Gloriosa (Reino Unido), Francesa, Americana, Haitiana, etc. Os primeiros direitos a nascer foram os direitos civis: todo mundo tem direito à vida, à liberdade, à propriedade, a ir e vir. Depois vieram os direitos políticos: todo mundo tem direito a votar e ser votado. Todo esse processo levou séculos, e é desigual entre os países até hoje. Mas falta um terceiro tipo de direito. É só entre os séculos 19 e 20 que começamos a falar em direitos sociais: todo mundo tem direito à cultura, educação, saúde, segurança, lazer, e liberdade de crença. Enquanto os dois primeiros direitos só dependem que o estado deixe as pessoas em paz, os direitos sociais exigem que alguém invista dinheiro para garanti-los. 


Pode ser o estado ou o mercado: o que eu quero aqui não é discutir qual das duas formas é melhor. Só quero que você olhe os exemplos: os grupos mais pobres da sociedade só começam a ter os três tipos de direito quando é o dinheiro que está em jogo. A escravidão dos negros nas Américas acaba quando máquinas e assalariados viram uma opção mais barata do que ter escravos. Hoje as máquinas são nossas escravas, fazendo o trabalho pesado. Outro exemplo. A sociedade é obrigada a apoiar as mulheres no mercado de trabalho quando grande parte dos homens tinha morrido nas duas guerras mundiais. As minorias deixam de ser perseguidas e ganham direitos quando passam a dar dinheiro à elite que  antes as perseguia.


Estamos quase chegando naquele “como” que Bullón não sabia. Acompanhe o raciocínio. A nossa vida hoje se baseia em democracia e capitalismo. A democracia venceu por causa das vantagens do capitalismo. Para que a perseguição volte, a democracia precisa acabar. E para que a democracia acabe, o capitalismo precisa parar de funcionar. Em resumo: se as pessoas deixam de ganhar dinheiro, elas não veem mais motivo para viver na democracia, e voltam a perseguir as minorias. 


E, acredite, já é um fato entre muitos economistas: o capitalismo está parando. Para entender isso, você precisa saber que o capitalismo tem dois tipos de combustível: o capital produtivo e o capital financeiro. O produtivo é o capital que vira mercadorias, que gera empregos, que a gente pega na mão e compra coisas. O financeiro é o capital da bolsa de valores, das apostas, dos empréstimos a juros que querem lucro alto e rápido. A partir dos anos 1970, o capital produtivo entrou num ciclo de crises (a última grande foi em 2008, lembra?), sem nunca se recuperar totalmente. A consequência é que o capital financeiro tomou conta de tudo: saúde, educação, segurança passaram a depender de um dinheiro de investidores que exigem lucro alto e rápido. Isso piora a vida das pessoas comuns, porque nem as empresas e nem os governos conseguem mais fazer planos de crescimento em longo prazo. 


Já que o capital produtivo não para de dar defeito, a democracia começou a dar também. As pessoas nunca gostaram realmente de conviver com as diferenças, mas toleravam enquanto todos estavam ganhando dinheiro. Agora que a pobreza do mundo só aumenta, o homem comum chutou o pau da barraca e não vê mais motivos para a democracia. Sem democracia, as pessoas vão aos extremos, de esquerda ou de direita.  Em qualquer um dos extremos, a ideologia trás discursos que não estão de acordo com a Bíblia. Por motivos históricos e culturais, as pessoas cristãs estão preferindo a extrema direita, e abraçando um militarismo conservador que não é necessariamente fundado na teologia cristã. Essa é a minha hipótese para explicar o sucesso de figuras como Trump e Bolsonaro, que seriam impensáveis anos atrás.


A chamada “cultura gospel” ajudou a unir evangélicos do Brasil. Pastores e cantores famosos, aproveitando todas as mídias, deixam de lado as doutrinas para unir seus fiéis ao redor de ideologias políticas e econômicas. Dois exemplos são o triunfalismo e teologia da prosperidade. Esses grupos aproveitam as falhas do capital produtivo para convencer os evangélicos de que não vale a pena continuar mantendo a democracia. Isso cria grandes contradições teológicas. A reforma radical pregava que os fiéis deveriam se isolar para evitar o pecado, mas a cultura gospel prega que os infiéis é que devem ser afastados da sociedade. A reforma radical pregava o estado laico para que a religião não se contaminasse com a política, mas a cultura gospel defende o monopólio do estado, usando a religião para purificar o estado. 


Essa é mais uma hipótese minha: a cultura gospel já pode ser considerada uma nova reforma protestante, uma reforma da reforma. Uma nova religião, diferente do cristianismo que nasceu da reforma radical. Essa nova religião é resultado dessa base social que está desmoronando: economia e democracia em risco. Esse é o “como” que Bullón não explicou. É assim que começa a nascer uma perseguição: um novo cristianismo, se deixando usar como pretexto para uma política extremista. Novos fiéis que preferem dar a democracia por encerrada, garantindo seu dinheiro na perseguição às minorias. 


E os adventistas no meio disso? Continuam obcecados com a teoria de que o Vaticano e o governo dos Estados Unidos vão se unir e criar um decreto dominical. Pode até ser. Mas o caminho para permitir que isso aconteça está bem debaixo de seus narizes. Não percebem que dentro do Brasil isso já está acontecendo. Bolsonaro, Malafaia, Feliciano, Valadões, Edir Macedo, Crivella, e toda essa aristocracia evangélica já estão misturando a igreja e o estado, assim como diz o Apocalipse. O projeto deles é cancelar direitos, encerrar a democracia, deixando que os mais fortes passem a fazer dinheiro na força. Talvez os adventistas não se deem conta de que são uma minoria. Ao apoiar a perseguição a LGBT’s, esquerdistas, às pessoas do Candomblé, estrangeiros, etc, estão abrindo caminho para sua própria perseguição.


Fiéis e pastores adventistas estão apoiando grupos de extrema direita, dando munição a um governo com todas as ferramentas para uma perseguição. O princípio que garante o direito dos gays se casarem, das mulheres abortarem, das pessoas se drogarem, é o mesmo princípio que te dá o direito de guardar o sábado: o princípio democrático. Se os direitos humanos não foram absolutos, se deixamos que eles sejam questionados, é meio caminho andado para que os sabatistas sejam tratados como mais uma minoria que precisa ser afastada da sociedade, mais uma minoria com seus direitos cancelados.


O capitalismo foi feito com prazo de validade, e está quase no fim. Quando a crise for completa e global, o ser humano vai voltar a mostrar o quanto é mau, dando fim de uma vez à democracia. Vão voltar a usar a religião para justificar seus atos, vão voltar a eleger um vilão, culpado por todos os seus problemas. Vão voltar a pregar a união das famílias e o militarismo contra esse inimigo. Palavras das profecias tão pregadas pelos adventistas, e que servem para descrever fascismo e comunismo. Esses dois extremos anti-democráticos têm princípios diametralmente opostos, mas com modos operandis exatamente iguais. Não dizem que a gente odeia o outro quando ele tem algo que odiamos em nós mesmos? 


A Bíblia diz que a verdade liberta, e que o povo perece por falta de conhecimento. Isso também se aplica à verdade científica, à razão, ao raciocínio, aos fatos. Se a formação dos líderes já começa com essa falha gigantesca, os fiéis não têm muitas chances de superá-la por si mesmos. Os líderes adventistas precisam rever o que estudam, o que pregam, em quem votam. Que o povo siga a tendência. O que estiver profetizado acontecerá, mas a igreja do Brasil quer ter suas digitais marcadas na perseguição das pessoas? Marcadas no início de sua própria perseguição? Até onde eu sei, ainda existe graça e chance de mudar.

Adventistas, profecias e analfabetismo político

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